Blade Runner: Por que a obra de Philip K. Dick continua atual
Faz pouco tempo que a série O Conto da Aia, da plataforma de streaming Hulu, deixou incontáveis espectadores perplexos com o futuro distópico no qual a história se ambienta. Baseada no icônico romance de Margaret Atwood, a série mostra as mais variadas formas de opressão que as mulheres sofrem cotidianamente sob o poder de um governo autoritário, militarizado e teocrático.
O seriado veio na esteira do aumento da demanda por narrativas distópicas — O Conto da Aia, lançado há mais de 30 anos, voltou a ser bestseller com 1984, história futurista de George Orwell lançada em 1949. No último dia 5, a série Blade Runner juntou-se a esse cenário ao voltar aos cinemas com um futuro neo-noir e chuvoso que também passa longe de ser um lugar bacana para se viver.
Blade Runner 2049, dirigido por Denis Villeneuve (A Chegada), é a sequência do filme de Ridley Scott lançado em 1982, um clássico cult de ficção científica baseado em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, filosófico livro do norte-americano Philip K. Dick (1928–1982).
Lançado em 1968 — mesmo ano que chegou aos cinemas 2001: Uma Odisseia no Espaço e O Planeta dos Macacos, e o mundo vivia um agudo momento político —, o romance de Dick mostra uma sociedade ultra-tecnológica em meio à destruição causada por uma guerra nuclear de escala global.
“É uma preocupação comum da ficção científica do século 20. Hoje a gente está mais focado em distopias políticas, mas na época da Guerra Fria, as pessoas estavam muito preocupadas com a bomba atômica”, analisa Bárbara Prince, editora do livro da Aleph, em entrevista ao HuffPost Brasil. A editora lança neste mês uma edição comemorativa de 50 anos do livro.
Prince diz que obras como O Conto da Aia refletem a atual discussão sobre lugar de fala na sociedade, ditaduras e fundamentalismos; o romance de Dick, por sua vez, reflete um risco que voltou a ser atual com os frequentes testes nucleares da Coreia do Norte e a troca de ameaças bélicas entre o país e os Estados Unidos. “A qualquer momento alguém pode explodir tudo.”
Em Blade Runner, as mulheres também não recebem o melhor dos tratamentos.
Entretanto, a discussão sobre lugar de fala também está presente no universo de Blade Runner — e, segundo a editora, este é outro motivo que faz a obra ainda ser atual.
Na história concebida por Dick, a Terra tornou-se uma grande periferia. Após o desastre nuclear, quem podia pagar foi viver em colônias em outros planetas; quem ficou para trás não tinha dinheiro ou foi barrado por não ter posição social.
Os androides, chamados de “replicantes”, servem como escravos aos humanos que vivem nas colônias. No entanto, esses robôs também têm capacidade de refletir e sentir — além de serem assustadoramente semelhantes aos humanos —, e se rebelam. Muitos matam seus patrões, fogem para a Terra e unem-se em grupos que clamam por espaço na sociedade. Para muitos humanos, eles são seres repugnantes. A abordagem que Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? faz de religião e animais também ajudam a compor o tecido de comentário social feito pelo autor.
Outro tema que também dá a Blade Runner um lugar especial na ficção científica é o questionamento do que é real ou não. A partir do filme de 1982, por exemplo, iniciou-se a discussão a respeito da origem do personagem de Harrison Ford, o caçador de androides Rick Deckard. Ele é ou não é um replicante? Trata-se de um intenso debate entre os fãs — e também de um reflexo das paranoias de Philip K. Dick.
Em uma convenção de ficção científica na França em 1977, Dick sentou-se à mesa diante do público, deu alguns tapinhas no microfone para testa-lo e anunciou: “Estamos vivendo em uma realidade programada por computadores. A única pista que temos disso é quando alguma variável é mudada e acontece alguma alteração em nossa realidade”.
O autor referia-se à sensação de déjà vu. Ou apenas nos deu mais um exemplo da grave paranoia que lhe acometia.
“Dick tinha problemas psiquiátricos, usava dezenas anfetaminas por semana e escrevia nelas, Ele dizia que tinha experiências espirituais e, em uma delas, viu Deus”, conta Prince. “Em todos os livros dele há a questão do que é real, do que é estar vivo, se a gente está mesmo vivo.”
“A vida toda ele teve esse tipo de transtorno. Não se sabe se era apenas psiquiátrico, ou as drogas, ou tudo isso misturado, mas era um questionamento que o autor colocou na obra dele.”
Enquanto há dúvida a respeito da origem de Deckard, uma certeza em Blade Runner é a marca da misoginia típica de Dick.
No novo longa-metragem, o androide K. (Ryan Gosling) vagueia por uma Los Angeles que transborda publicidade — lá, o capitalismo venceu de goleada — e uma delas é o gigantesco holograma de Joi (Ana de Armas) completamente nua; ela é uma inteligência artificial que faz companhia a homens. Não há sinal de homens que também sejam hologramas para sexo ou comercializem sexo de maneira fria e objetiva, como a prostituta Mariette (Mackenzie Davis).
“Dick tinha muito problema com mulher. Foi casado seis ou sete vezes e há várias histórias de relacionamento abusivo com as esposas dele. Em toda obra dele, a representatividade feminina é péssima”, defende a editora. “A mulher está lá para ser uma coitada, ou muito burra e fazer alguma merda, ou ser um objeto sexual.”
“O homem está nos livros dele para ser um herói e participar da história, mas com a mulher é outra história. Se ele puder escrever sobre o decote dela, ele escreve.”
2049
Trinta anos após os acontecimentos de Blade Runner, o Caçador de Androides, o replicante K., membro do departamento de polícia de LA, recebe a tarefa de investigar um movimento que liberta outros androides. Ele encontra uma caixa com os restos mortais de uma replicante que estava grávida — algo até então considerado impossível. O segredo pode mudar absolutamente tudo.
Além de Gosling, de Armas, Davis e Ford, também estão no elenco Robin Wright, Jared Leto, Sylvia Hoeks, Carla Juri e Dave Bautista. O roteiro é de Michael Green (da série American Gods) e Hampton Fancher (do filme de Ridley Scott); o enredo foi concebido por Fancher, que usou personagens do romance de Dick.
Os curta-metragens 2036: Nexus Dawn, 2048: Nowhere to Run e Blade Runner Black Out 2022 — um anime de Shinichir? Watanabe — complementam a experiência.
A obra de Dick está viva e em boa fase de adaptações. A plataforma de streaming da Amazon lançará em 2018 a terceira temporada da bem-sucedida The Man in the High Castle, distopia que imagina o que seriam os Estados Unidos dos anos 1960 caso o Terceiro Reich tivesse vencido a II Guerra Mundial. Frank Spotnitz (Arquivo X) é o criador.
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