Os apreciadores dos livros temem…

Rômulo Neves, no Metrópoles

É comum nos depararmos com opiniões que colocam o computador e as novas tecnologias como inimigas do livro, seja pelo tempo que elas consomem de nossas vidas, seja porque as informações são apresentadas num suporte diferente do papel. Os apreciadores dos livros temem que a internet tire público da literatura.

O receio não é de todo descabido: ao mesmo tempo em que os indicadores de leitura – especialmente a venda de livros – vêm caindo no Brasil, o brasileiro é, segundo estatísticas, o usuário de internet domiciliar que fica mais tempo conectado – e esse tempo só aumenta, com a popularização dos smartphones.

Mas atacar a tecnologia não é o caminho para reverter esse quadro. É possível que muitos jovens prefiram a internet à leitura, mas, paradoxalmente, é entre os jovens que o hábito de ler cresce, pelo menos um pouco, enquanto o livro perde público na faixa etária dos adultos jovens.

Outro aspecto interessante dessa questão é que, na maior parte dos casos, bons leitores também são pessoas bem informadas e usuárias de internet. O assunto tecnologia e literatura, inclusive, é um dos quatro temas-chave da Bienal do Livro de Brasília, que começa no dia 21 de outubro de 2016, no Estádio Mané Garrincha.

A saída para superar essa falsa dicotomia entre leitura e tecnologia é aproveitar as novas facilidades tecnológicas para estimular e não competir com a leitura. A internet pode ser o meio de entrada para um bom livro. Aliás, este é o propósito desta coluna”

Meu palpite é o de que o melhor caminho para que a tecnologia seja parceira da leitura é torna-la filtro e guia para títulos de qualidade. Esse é o caso de diversos aplicativos, portais, blogs e programas que, com base na tecnologia, buscam valorizar o livro e estimular a leitura.

A combinação mais óbvia do novo com o tradicional são os e-books. Trata-se de uma solução tecnológica que simula a leitura do livro em um suporte eletrônico. É uma solução que barateou o acesso, já que os e-books são, algumas vezes, até 50% mais baratos do que o exemplar físico.

Mas isso depende da quantidade de livros que o camarada consome, já que, para ler o e-book, você precisa de um e-reader. Esse custo precisa ser diluído na economia com os livros. A partir de dez livros, já começa a valer a pena ter um e-reader. O kindle, da Amazon, é o mais conhecido, mas não o único. A Saraiva, com o Lev, e a Cultura, com o Kobo, também entraram no mercado. O problema aí é que competem com um conglomerado mundial, capaz de trabalhar com margens de lucro bastante baixas.

A adoção do e-book não é, entretanto, sem traumas. Muita gente – inclusive o colunista aqui – tem um fetiche pelo objeto livro e por folhear as páginas, ler passagens aleatórias, às vezes sem compromisso. Com o e-book, a leitura é mais objetiva, planejada, direta. A compensação é o acesso imediato a dicionários, notas, outros textos e materiais, que podem tornar a leitura mais interessante – mas também menos concentrada. Fazer anotações também é bem mais simples no e-book.

Mas o e-book e o e-reader são apenas suportes. A tecnologia também tem formas de estimular a leitura pelo conteúdo e pela agilidade na aquisição dos próprios livros. As compras pela web, por exemplo, colocam, virtualmente, qualquer livro ao alcance de qualquer leitor.

Novamente a Amazon desponta como destaque – aliás a Amazon definitivamente não é uma livraria, mas um modelo de negócios -, porque uma vez que você se cadastra e compra no site, suas próximas compras são simplificadas e, se for sua opção, direcionadas de acordo com suas preferências, com promoções diárias em sua caixa de mensagens.

As brasileiras estão correndo atrás: Cultura e Livraria da Travessa, por exemplo, já adotaram algo parecido e enviam suas mensagens aos e-mails dos clientes cadastrados, mas a infinidade de dados e o ganho de escala da operação da Amazon é algo assustador e a inteligência artificial por trás da mensagem: “quem comprou esse livro comprou também esse, esse e mais esse” é um risco para qualquer conta de cartão de crédito.

Livros usados também ficaram muito mais fáceis de serem acessados. A Estante Virtual – uma ideia genial – coloca ao alcance dos dedos um acervo potencialmente infinito, incluindo os títulos fora de catálogo que, 15 anos atrás, consumiam dias de busca pelos sebos e sua desorganização cativante.

Novamente, troca-se o prazer do ato de vagar meio sem rumo pelas prateleiras, por uma busca limpa, objetiva e asséptica. Mas os algoritmos de buscas inteligentes devem chegar em breve ao mundo dos sebos virtuais: “quem comprou esse, comprou esse, esse e mais esse”.

Outra vertente da cooperação entre a tecnologia e a literatura são conteúdos e aplicativos que buscam estimular a leitura de livros. Colunas como esta ou de resenhas curtas, como a leioedoupitaco.blogspot.com.br, buscam apresentar livros e debates sobre a literatura.

Outro exemplo é o goodreads.com, que funciona na plataforma Facebook, conectando leitores que queiram compartilhar experiências de leituras. Uma ideia genial, mas que ainda não pegou é o aplicativo Livrio (livr.io), de compartilhamento de livros entre amigos. Você coloca sua biblioteca à disposição para empréstimo e pode emprestar o livro de alguém que usa o aplicativo.

Uma boa novidade é o TagLivros (taglivros.com). Trata-se de um negócio que combina celebridades, bons livros, conveniência e, claro, uma mensalidade. Cada mês o serviço reúne um grupo de curadores famosos – iniciaram com grandes escritores, mas o cardápio pode variar -, que selecionam um livro surpresa, que é enviado para os assinantes do serviço, com uma revista crítica. A tecnologia aqui é mero suporte para juntar o que interessa: um bom produto, uma boa apresentação e a facilidade logística.

Os escritores também fazem uso da tecnologia para driblar as dificuldades do mercado editorial. Ainda que os custos de publicação tenham caído bastante – até pelos efeitos dessa mesma tecnologia -, eles ainda são altos e muitos escritores optam por lançar suas obras inicialmente no formato e-book, para depois lançarem em papel.

Experiência mais radical ainda é a disponibilização do material na rede, como é o caso do portal da revista Vida Secreta, que tem as edições em formato digital, mas, também, obras excelentes de autores como Marcelino Freire (“Poeminhas tamanho p”) e Adriane Garcia (“Enlouquecer é ganhar mil pássaros”). Você lê na Internet, mas dá uma vontade danada de ter o exemplar físico!

Essa pendenga entre livro e internet, porém, é apenas o retrato de questões mais profundas e carências e limitações na formação dos leitores. O exemplo de pais que leem e de professores que apresentam bons livros na escola dificilmente é esquecido.

Mesmo com toda a atração dos jogos eletrônicos e da profusão de manchetes do mundo virtual, o hábito da leitura, gerado na infância e na juventude, se estiver bem embasado, dificilmente será abandonado. Antes de brigar com a tecnologia, divirta-se com um bom livro e ensine o seu filho ou aluno a se divertir também.

Desordem (trecho)

dir-se-ia

então

que

para dizer

a desordem

da fruta

teria a fala

– como a pera –

que se desfazer?

que de certo

modo

apodrecer?

mas a fala

é só rumor

e ideia

não exala

odor

(como a pera)

pela casa inteira

a fala, meu amor,

não fede

nem cheira

Ferreira Gullar (Em Alguma Parte Alguma, 2013)

Compartilhe: