Elevado ao posto de homenageado da Flip 2017 (Festa Literária Internacional de Paraty de 2017), o escritor Lima Barreto nem sempre teve o prestígio de figurar no panteão dos grandes escritores da literatura brasileira. Negro que lutou contra o racismo, marginalizado, asilado em um manicômio e cronista de hábitos que a alta sociedade tentava varrer para debaixo do tapete, o escritor foi resgatado apenas nas últimas décadas por pesquisadores.

Autora do livro Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura, a escritora e pesquisadora Luciana Hidalgo explica os motivos que levaram Lima Barreto a ser preterido durante décadas na história da literatura brasileira, até a publicação da biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa, que levou o escritor à academia, onde passou a ser chancelado por teóricos e historiadores como Antonio Candido, Nicolau Sevcenko, Osman Lins, Alfredo Bosi, Antonio Arnoni Prado, Beatriz Resende e Lilia Schwarcz. Ela afirma que o escritor pagou um preço altíssimo devido ao “caráter socialmente inaceitável”.

“Lima Barreto criou uma literatura que transgrediu todos os códigos sociais, intelectuais e políticos de seu tempo, ampliando os limites entre pele branca e negra, pobres e ricos, literatura popular e erudita, lucidez e loucura. Fosse em romances, contos ou crônicas, o que interessava era ir contra o estabelecido, contra o ‘politicamente correto’. Ele dizia o indizível, aquilo que a princípio não se poderia dizer, devido ao caráter socialmente inaceitável de seu conteúdo. E por isso pagou um preço altíssimo em sua vida prática, sendo banido dos círculos literários mais importantes da época”, explica Luciana Hidalgo.

A professora de Literatura Brasileira da UERJ Giovanna Dealtry ressaltou as diversas facetas do escritor e sua importância na compreensão da cultura das ruas do Rio de Janeiro e da Primeira República no Brasil. “Acho importantíssima essa homenagem da Flip a Lima Barreto, autor de crônicas, contos e romances incontornáveis para entender a cultura das ruas do Rio de Janeiro e o próprio Brasil da Primeira República”, diz Dealtry, autora de livros como No Fio da Navalha: malandragem na literatura e no samba.

Dealtry lembra que só agora, mesmo com a homenagem a Machado de Assis na edição de 2008, a Flip terá a oportunidade de colocar em evidência um escritor negro que lutou contra “uma sociedade evidentemente racista”, como enfatiza a professora.

“Apesar de Machado de Assis já ter sido homenageado pela Flip, acho que agora estará mais em evidência a figura do autor negro lutando contra uma sociedade evidentemente racista. A biografia e a trajetória como escritor de Lima Barreto têm muitas faces: o escritor marginalizado, o combatente das políticas de Estado, o flâneur, o asilado etc, espero que a diversidade desses aspectos seja contemplada nessa mais do que justa homenagem”, analisa Dealtry.

Para a escritora Luciana Hidalgo, a homenagem a Lima Barreto vem em momento oportuno, já que, diante dos atuais retrocessos de políticas públicas em relação a importantes direitos sociais conquistados, a leitura da obra do autor nos deixa ver “como avançamos pouco no Brasil”.

“Infelizmente, todas as suas denúncias, feitas há mais de um século, continuam cada vez mais evidentes nos dias de hoje: os pistolões, os esquemas de corrupção e apadrinhamento político, o círculo vicioso dos poderes sempre nas mesmas famílias, o abismo entre casa-grande e senzala, a luta de classes, o racismo etc. Ler Lima Barreto é ver como avançamos pouco no Brasil, em todos os ‘nós’ da sociedade brasileira. Ler Lima Barreto hoje é fundamental para esse Brasil dividido, pois ele acreditava profundamente na literatura como ‘traço de união'”, explica Hidalgo.

A organização da Flip, ao justificar a escolha do homenageado na edição que acontece entre os dias 26 e 30 de julho de 2017, afirma que pretende resgatar a trajetória de um homem que viveu em um meio marcado pela divisão de classes e pela influência das belas letras europeias e que, por isso, teve dificuldade em afirmar com as suas origens o seu valor: “Foram necessárias várias gerações para que se consolidasse o nome do criador de uma das obras mais plurais e inovadoras da literatura brasileira, que permite tanto o apreço do leitor quanto reflexões nos campos da literatura, da história e das ciências sociais”.

Uma das maiores entusiastas do autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma como homenageado, a jornalista Joselia Aguiar, escolhida pela organizadora da Flip, a Associação Casa Azul, no encerramento da edição de 2016, como curadora responsável pela programação da 15ª Flip, defende que o evento contribua para revelar não apenas o Lima Barreto da literatura social, mas também o inventor que esteve à frente de sua época e inspirou “toda uma linhagem da literatura em língua portuguesa”.

“Por muito tempo Lima Barreto ficou na ‘aba’ de literatura social, e sua obra e trajetória possibilitaram muitos debates sobre a sociedade brasileira. O que eu gostaria, mesmo, é que a Flip contribuísse para revelar o grande autor que ele é. Para além das questões importantíssimas sobre o país que ajuda a levantar, tem uma expressão literária inventiva e interessante, à frente de sua época em termos formais, capaz de inspirar toda uma linhagem da literatura em língua portuguesa”, afirmou a curadora da Flip 2017.

*Por Eduardo Miranda, no Jornal do Brasil.

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