Cena do filme ‘Uma História de Amor e Fúria’ (2013), animação de Luiz Bolognesi Foto: Europa Filmes

Principais editoras do País voltam os olhos para fantasia, ficção científica e horror, enquanto editoras especializadas falam sobre crescimento do gênero

André Cáceres, no Estadão

Dentro da literatura brasileira existe uma outra literatura subterrânea, invisível. Nela, autoras e autores radicalmente inventivos na forma e no conteúdo destilam ideias vertiginosas. Por décadas desprezada pela crítica, ofuscada pelo mercado e ignorada pelo público, a ficção especulativa nacional vem sendo (re)descoberta. Dois lançamentos recentes contribuem para isso: a coletânea Fractais Tropicais (Sesi-SP) reúne 30 dos melhores contos de ficção científica no Brasil; e o estudo Fantástico Brasileiro (Arte e Letra) perpassa a história da literatura nacional pinçando elementos fantásticos na obra dos principais autores.

O intelectual israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens e Homo Deus, acredita que hoje a ficção científica é o mais relevante gênero artístico existente, pois “molda a compreensão do público de coisas como inteligência artificial e biotecnologia, que provavelmente transformarão nossas vidas e a sociedade mais do que qualquer outra coisa nas próximas décadas”. Talvez isso explique por que Ana Maria Gonçalves se interessou pelo estilo. A autora de Um Defeito de Cor – lançado em 2006, foi considerado por Millôr Fernandes o mais importante livro da literatura brasileira no século 21 – ambienta seu próximo livro, Quem é Josenildo?, em uma São Paulo futurista cujos habitantes têm chips implantados em seus cérebros.

Ao se aventurar pelo estilo, Gonçalves entra em uma longa tradição que é apresentada didaticamente na coletânea Fractais Tropicais, organizada por Nelson de Oliveira em três “ondas” de autores. Essa divisão foi cunhada por Roberto de Sousa Causo, escritor e pesquisador do gênero, que também tem um conto na antologia. A primeira fase surgiu nos anos 1960 pelas mãos do editor Gumercindo Rocha Dorea, 94, pioneiro na publicação sistemática do gênero no Brasil. Nela se encaixam a acadêmica da ABL Dinah Silveira de Queiróz (1911-1982), autora de Eles Herdarão a Terra (1960), e André Carneiro (1922-2014), autor, entre outros de Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991).

A segunda e terceira ondas despontaram à margem do mercado editorial. Uma com as fanzines dos anos 1980 e a outra, ainda em expansão, pela internet. Ambos os períodos se confundem, pois vários autores continuam produzindo intensamente, como Carlos Orsi, Gerson Lodi-Ribeiro e Braulio Tavares, todos contemplados na antologia. Enquanto alguns autores como Tavares, Causo e Jorge Luiz Calife se mantêm em um registro que prima pelo rigor científico, outros nomes como Fausto Fawcett, Ronaldo Bressane e Andréa Del Fuego transitaram durante a carreira pela literatura mainstream e injetam influências diversas no gênero.

A obra demonstra que a literatura especulativa brasileira, diferente da estrangeira, tem um pé no absurdo surrealista de Murilo Rubião, José J. Veiga e Campos de Carvalho, nas maquinações fantásticas de argentinos como Jorge Luis Borges (o conto Metanfetaedro, de Alliah, brinca com a geometria de uma forma inventiva que lembra as ficções de Borges) e Adolfo Bioy Casares, e no realismo mágico de Gabriel García Márquez. A mistura é singular, sem paralelos na literatura mundial.

Insólito literário

Fantástico Brasileiro não se limita à ficção científica, mas amplia seu escopo para a fantasia, o horror e outras categorias especulativas. Para empreender tal investigação, Bruno Anselmi Matangrano, doutorando em letras pela USP, e Eneias Tavares, professor de literatura na UFSM, utilizam o conceito de “insólito”. Essa ideia, proposta pelo professor da UFRJ Flavio García, é um guarda-chuva que abarca desde o inseto monstruoso de Franz Kafka, a cegueira coletiva de José Saramago e o defunto-autor de Machado de Assis até dragões, robôs, fantasmas e sociedades distópicas.

O conto que inaugurou o elemento insólito na literatura brasileira é Um Sonho (1838), do político, jornalista e escritor Justiniano José da Rocha (1812-1863). Nele, a protagonista Teodora recebe a visita fantasmagórica de sua mãe morta, Tereza, que antevê sua morte em três dias. A aparição é tida como onírica pela mulher, mas três dias depois ela de fato morre. Já o luso-brasileiro Augusto Emílio Zaluar (1825-1882) foi autor da primeira ficção científica do País, intitulada Dr. Benignus (1875), que retrata “um cientista buscando a transcendência espiritual através do conhecimento científico”, contam os estudiosos. “Em outras palavras, o insólito brasileiro nasce praticamente ao mesmo tempo que a noção de literatura nacional.”

Mas o aspecto especulativo ou fantasioso não se limita aos autores identificados especificamente com esses gêneros. O mérito de Matangrano e Tavares é mostrar como esse elemento permeia toda a literatura nacional, como no modernismo de Mário de Andrade (Macunaíma) e Menotti Del Picchia (A Filha do Inca, ficção científica também conhecida como República 3000) ou no regionalismo insólito de Graciliano Ramos (A Terra dos Meninos Pelados) e Ariano Suassuna (O Auto da Compadecida). O conto Congresso Pamplanetário, de Lima Barreto, por exemplo, mostra uma reunião entre representantes de diversos planetas para discutir o papel de Júpiter na política espacial. Já Um Moço Muito Branco, de Guimarães Rosa, sugere a visita de um alienígena ao sertão nordestino.

É claro que Fantástico Brasileiro reserva a maior parte de suas páginas à catalogação de autores dedicados exclusivamente à literatura especulativa, principalmente contemporâneos como Felipe Castilho (A Ordem Vermelha) e Aline Valek (As Águas Vivas Não Sabem de Si). No entanto, outros nomes de contemporâneos pouco associados a ela também estão contemplados no livro, como Joca Reiners Terron (Noite Dentro da Noite), Ignácio de Loyola Brandão (Não Verás País Nenhum) e Chico Buarque (Fazenda Modelo), o que torna o livro interessante também para quem não conhece os gêneros em questão. Detalhando a produção nacional em uma divisão temática, a obra torna-se referência incontornável para quem quiser se aprofundar no tema.

Mercado editorial

Nos últimos anos, a ficção especulativa ganhou espaço também no mercado editorial. Grandes editoras criaram ou reformaram selos para publicar esse tipo de literatura, como a Fantástica Rocco, a Suma de Letras (da Companhia das Letras) e a Minotauro (da Planeta). “Do ponto de vista editorial, a FC brasileira vive nesta segunda década do século o seu melhor momento, com o surgimento ou a consolidação de editoras, principalmente em São Paulo, como Devir, Aleph, Draco, Tarja, Terracota, Giz”, escreve Braulio Tavares em Páginas do Futuro, coletânea que organizou para a Casa da Palavra.

A editora Bárbara Prince, da Aleph, especializada em traduções dos clássicos estrangeiros de FC, afirma que o público do gênero, embora restrito, vem crescendo especialmente entre os mais jovens. “Pode ser meio bobo, mas acho que um dos fatores para esse aumento é a normalização do nerd. O interesse por ficção científica acompanha isso. Ainda existe preconceito por parte do leitor mais velho, mas tenho visto os jovens se aproximando.” Ela acredita que o recente sucesso de obras audiovisuais como A Chegada e Black Mirror ajuda a desmistificar o estilo, mas lamenta: “Ainda existe a ideia de que esse tipo de história é infantil e exclusivamente masculina.”

Erick Sama, editor da Draco, uma das principais casas de autores nacionais, acredita que o onipresente complexo de vira-lata brasileiro vem sendo vencido aos poucos. “No começo, tínhamos uma preocupação sobre como o público reagiria, se as pessoas só se interessam pelo que tem grife estrangeira, mas foram barreiras que quebramos. Sinto que o público se importa cada vez menos se é estrangeiro ou daqui, desde que seja bom.” Em 2018, a coletânea de contos Solarpunk, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro para a Draco, chegou a ser publicada pela World Weaver Press nos Estados Unidos, o que apenas reforça a qualidade pouco explorada dos autores brasileiros. “O retorno que recebemos é a surpresa de ‘Isso é tão bom, é nacional mesmo?’”, brinca Erick.

Victor Gomes vem consolidando a editora Morro Branco com autoras estrangeiras premiadas, como Margaret Atwood, Octavia Butler e N.K. Jemisin, mas espera que esses títulos ajudem a fomentar interesse para a literatura nacional. “Precisamos mudar a percepção do público. Temos essa pendência como um povo, não só na literatura, de pensar que o estrangeiro é melhor”, lamenta ele. “Nesse momento, estamos trazendo obras principalmente internacionais, mas nossa ideia é, por meio delas, melhorar o mercado de ficção científica aqui no Brasil e em um futuro bem próximo trazer obras nacionais desse gênero.”

Essa opinião é compartilhada por Thiago Tizzot, editor da Arte e Letra, de Curitiba, que publica autores nacionais como Fausto Fawcett e Ana Cristina Rodrigues. Ele vê no mundo virtual uma ferramenta poderosa para esse fomento. “A literatura especulativa cria universos que são propícios para o surgimento de grupos de discussão. A internet hoje permite encontrar pessoas que gostem das mesmas coisas que você. Isso faz com que esses grupos se fortaleçam e o interesse por esses livros aumente”, afirma o editor.

Thiago acredita que a recente entrada de grandes editoras nesse cenário e a evolução qualitativa das pequenas e médias torne as obras brasileiras ainda mais atraentes para o público. “Até pouco tempo atrás, o autor nacional se autopublicava ou tinha editoras que não faziam um trabalho tão profissional. A partir do momento que editoras mais consistentes deram espaço para esses autores, isso reflete na percepção do leitor.”

Enquanto essa onda de imaginação literária floresce, resta aguardar o que os autores da literatura nacional terão a dizer em um Brasil cujo cotidiano é cada vez mais surrealista.

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